Soul Music — uma abordagem no contexto da black music Josué Cassiano
Introdução
Não é possível falar de soul sem remontar ao que se denomina black music. Black
music é o termo utilizado para denominar todas as formas (estilos) musicais desenvolvidas
pelos negros americanos, escravos ou descendentes destes, na região Sul dos
Estados Unidos (onde a escravidão e a segrega¸cão racial foram bastante acentuadas).
São estilos que compõem a black music: blues, jazz, rhythm’n’blues e soul, apenas
para citar alguns.
Work songs e spirituals
Em algumas tribos e mesmo sociedades, como a européia, era (ainda é, em algumas
culturas) costume entre os trabalhadores bra¸cais entoar canções durante a realiza¸cão
do serviço. Tais canções de trabalho (work songs) tinham por objetivo manter o
ritmo entre os componentes de uma equipe e/ou tornar o trabalho menos tedioso.
Muitas delas apresentavam a característica responsiva, onde uma voz fazia as vezes
de solista e as demais respondiam em coro. Outra característica era a improvisação,
que provia os trabalhadores com uma forma de expressão subversiva: escravos cantavam
sobre fugas e marinheiros proferiam imprecações contra o capitão. Não se
deve confundir esse tipo de canção, que era executada durante a realização do trabalho,
com as músicas de celebração e agradecimento pela colheita, também presente
na maioria das sociedades antigas.
As work songs, quando executadas por escravos distantes de sua terra (a exemplo
do Brasil e Estados Unidos), refletiam o sentimento de nostalgia pela pátria e revolta
pela situação de escravidão. No Brasil, destacam-se as letras de inconformismo e
referência a medo (veja-se o tradicional “Boi da cara preta”, cantada por amas-secas
para acalentar as crianças dos senhores). Nos Estados Unidos, país protestante, as
work songs foram mescladas com letras religiosas, destacando-se as que louvavam o
Paraíso (referência à terra natal e à liberdade), o Êxodo, a passagem pelo Jordão
e um Deus guerreiro, além de apresentarem muitas vezes melodias tristes. Esse
caráter místico-religioso marcou o surgimento dos negro spirituals, ou simplesmente
spirituals, dos quais destaca-se “Swing low, sweet chariot”, um dos mais conhecidos.
Blues e jazz
O blues foi a primeira grande manifestacão da black music, influenciando os demais
gêneros. Deriva diretamente dos spirituals, do qual herdou o sentimento de
tristeza expresso por esse tipo de música (o próprio termo blues denota infelicidade).
Apresenta também a estrutura responsiva das work songs e baseia-se em
uma escala pentatônica. É uma forma basicamente vocal (mas, ao contrário dos
spirituals, que eram executados a cappella, apresenta acompanhamento instrumental),
onde destacam-se as improvisações e as blue notes, que são intervalos menores
que um semitom (recurso típico da música africana que confere ao gênero um caráter
melancólico e intenso). Seus executantes apresentam vibratos, uso de melismas 1 e
entonação nasal — característica presente em certas regiões da África.
O jazz desenvolveu-se sob a influência do blues, em New Orleans (Nova Orleans),
através das tentativas dos negros instrumentistas americanos (muitos, aliás,
músicos de blues) em executar de cor (pois não liam partitura) canções ocidentais
conhecidas. A falta de conhecimento de algumas partes das músicas obrigava-os a
improvisar constantemente (o que ja era comum nos estilos anteriores e traço característico da cultura africana), o que veio a se consolidar como a grande pérola
do jazz. Os primeiros grupos de jazz eram compostos majoritariamente por metais,
acompanhados de alguma percussão, pois surgiram das bandas marciais. Posteriormente,
outros instrumentos passaram a ser utilizados nesse estilo, culminando com
o uso de instrumentos elétricos, como a guitarra e o contra-baixo. O jazz é essencialmente
instrumental e `as vezes mescla-se com o blues, pois seus músicos executam
ambos os estilos.
Rhythm and blues
Rhythm and blues foi um termo criado pela crítica musical americana para designar
as músicas executadas pelos negros que combinavam jazz e blues. O nome prestouse
ao serviço de marketing, para substituir o termo pejorativo então vigente para
designar as músicas dos negros (race music) por um nome apelativo para os brancos.
É dele que se origina o rock and roll, ao se fundir com a m´usica country dos
brancos. Anos depois de seu surgimento, a abreviatura R&B passou a ser usada para designar músicas que combinam elementos do blues, jazz e inovações, como
percuss˜ao acentuada: soul, disco, funk, pop e hip-hop.
1Uma sílaba que se estende por várias notas.
Gospel e soul
Gospel é uma forma de música cristã executada por negros americanos convertidos
à religião protestante. Executada com grande emoção e júbilo, apresenta a característica responsiva, oriunda da cultura africana e presente no comportamento entre
o pastor e a congregação nas igrejas negras americanas.
A princípio, os grupos de gospel eram formados por quartetos masculinos (primeiro
e segundo tenores, barítono e baixo), com bastante ornamentação na execução dos
solos. A estrutura foi alterada ao passar do tempo, excluindo-se o baixo e admitindo
a participação feminina (sopranos e contraltos). Também foram formados duplas,
trios, pequenos grupos, coros e mesmo executantes individuais. Com o advento do
reavivamento religioso nos Estados Unidos, o estilo alcan¸cou grande expressividade,
pois muitos evangelistas, como Billy Graham, faziam-se acompanhar de tais grupos.
O estilo gospel de cantar é uma arte de execução. É um método de distribuição da
letra da música sob demanda em habilidades vocais e técnicas realizadas por seus
int´erpretes. Assim como os músicos de jazz, é altamente espontˆaneo e intuitivo.
Reflexo disso é o fato de os maiores cantores de gospel normalmente terem nascido
em comunidades onde o gˆenero era cultivado. Essa característica foi completamente
herdada pela soul music.
A estrutura das músicas gospel foi utilizada por alguns centros de estudo de
música para ensinar grupos de quatro vozes a aprimorar suas técnicas, como cada
participante executando uma parte diferente da música ao mesmo tempo (as conhecidas
“convenções”). Um grande sucesso mundial do gˆenero foi gravado por um
coral da Calif´ornia (o Edwin Hawkins Singers): “Oh Happy Day”.
O soul nasceu em Memphis e deriva diretamente do gospel e do rhythm and blues,
com destaque para o primeiro (grande parte dos cantores de soul eram anteriormente
cantores de gospel). São características desse gênero: timbres vocais e sonoridades
especiais, grande intensidade vocal, extravagância no uso de melismas. Credita-se
seu início a Sam Cooke, Ray Charles e James Brown, sendo Aretha Franklim sua
maior representante (recebeu o t´ıtulo de “rainha do soul”). Tamb´em contribuiu para
sua popularização a participação da gravadora Motown (que lançou Stevie Wonder),
embora seu estilo seja mais comercial.
O soul pode ser considerado a fusão do sagrado (gospel) com o profano (blues).
Seus temas eram variados, mas retrataram fortemente a situação social dos negros
americanos. Ramificou-se em vários gêneros, como o neo soul, o southern soul e o
psychedelic soul (este último pavimentou o caminho para o funk).
Conclusão
A black music, pode-se dizer, foi a maior contribuição da Am´erica para a M´usica.
O sofrimento dos escravos africanos foi vingado com os aplausos que os brancos lhe
deram e a impregnação de seus costumes `a cultura elitista ocidental. No entanto,
frise-se, o conhecimento musical ocidental — como a escala de 12 sons, acordes com
s´etimas e compostos 2 — e instrumentos europeus (a maioria dos metais), contribuiu
enormemente para a caracterização do jazz, principal estilo desse gênero.
Nesse contexto o soul merece também papel de destaque, pois influenciou diretamente
tanto novos estilos musicais (são derivados diretos dele o disco, o funk e o
hip-hop) como contemporâneos, a exemplo do pop. Ele estendeu os horizontes do
gospel cristão para o mundo secular.
2Acordes que ultrapassam o limite da oitava.
